domingo, 24 de agosto de 2008

Conversa de índio: muito além de Vera Cruz, uma tal aldeia global.


“Mãe que matou filho é condenada a 6 anos”. “Menina é encontrada boaiando na Lagoa da Pampulha.” “Mulher mata filha de cinco meses.” “Mãe suspeita de jogar bebê no lixo é presa.” Atos como esses têm provocado repugnância e horror. Uma barbárie - exclama em coro a sociedade. Mas quando o assassino é o “bárbaro”, qual a medida do julgamento, do sofrimento, da perplexidade e da punição?

O Estado liberal admite a existência de valores que transcendem as culturas particulares e que devem, assim, estar inscritos na Declaração dos Direitos Humanos, válidos em escala planetária (Roberto Cardoso, 1993) [1]. Entre as prescrições que aparecem no documento está o direito inalienável à vida e a penalização de quem aja contra ela. Para os índios, no entanto, o infanticídio não cabe nessa descrição. Nas comunidades onde é praticado, ele é tomado como uma crença social povoada de todo um imaginário simbólico. Se não existe por parte dos membros das tribos a consciência do ato como delito, é mesmo pelo próprio isolamento em que vivem, o que faria de qualquer sanção sobre eles um estranhamento, se não, uma incongruência. Vemos-nos diante de um inegável choque cultural. Mais do que isso, compartilhamos um paradoxo. Porque enquanto se defende o protecionismo das comunidades indígenas como forma de manutenção das tradições, se reivindica também que esses mesmos costumes não sejam incompatíveis com a lógica universal. A sociedade brasileira, temerosa do etnocentrismo e nutrida de sentimento de culpa nacional, assume o princípio do relativismo de valores, ao mesmo passo que elege a noção cosmopolita. Como resolver esse impasse? Sendo o gênero humano dotado de competência comunicativa, deveria ele, em toda a sua extensão, ser entendido como co-autor de seu mundo. E nesse sentido, portanto, falaríamos de uma ética discursiva e dialógica. (Roberto Cardoso, 1993) [2]

A tentativa de negociar interesses e perspectivas, de fato, existe. Atores sociais oferecem na esfera pública suas justificativas, acepções e discordâncias sobre o assunto. Percebemos, claramente, o viés antropológico, o religioso e o legal e toda maneira como esses discursos condensam alguns dos nichos de opiniões públicas. Não se trata apenas de uma divisão casual entre aqueles que concordam com a prática, aqueles que a condenam ou os que são indiferentes, se é que isso é possível (talvez seja melhor dizer que carecem de respostas). O que se reconhece é que a lógica de referência que cada um desses grupos adota é constituída e também constituinte do campo político, cultural e social sobre o qual operam.

As populações étnicas observáveis em contextos nacionais estão sob o domínio de um Estado controlado por uma única etnia, o que significa que eles vivem como minorias. (Roberto Cardoso, 1993) [3] Essa é a condição dos índios, ora vistos de maneira depreciativa, ora de maneira exaltada, mas em ambos como sujeitos não autônomos. Apontado sempre como o outro, ingênuo e atrasado, e assim, incapaz de discernir o bem e o mal, o indígena ocupa as margens raramente alcançáveis. Sua invisibilidade fica evidente na ausência da sua própria voz (porque fala-se por ele, não para ele). O que se tem é o reflexo do paternalismo e da função tradutora e pedagógica admitidos na política indianista, muitas vezes até como forma de compensação histórica (dizem para evitar danos ao equilíbrio cultural).

Se a nossa sociedade se propõe a pensar e questionar a maneira como as tribos se organizam e relacionam, o maior convidado para o debate deveria ser aquele a quem se investiga. No entanto, o índio aparece, na maioria das vezes, é apenas como o objeto da discussão e da intervenção. A convocação das vontades e dos agentes para a mudança não inclui o gentio, visto aqui em toda a sua passividade. E é assim que o homem “civilizado” assume o papel de julgar as regras que não regem uma vida comum, mas a vida de um longínquo.

Os conquistadores não são os outros, daqueles tempos remotos. Somos nós. Os índios revivem a irônica condição de “hóspedes de sua própria casa”, ocupada historicamente por uma população colonizadora (para resgatar Euclides da Cunha). Quem aqui é o exógeno, se estamos tão próximos, mas também tão distantes? Quando se conclama a coletividade e quando, ao contrário, o apelo é ao sujeito e sua dignidade? E qual é esse público legitimado não apenas a emitir a opinião, mas também a transformar essa realidade? Como conduzir os processos inevitáveis de alteração e alteridade?

Tratamos, em todo caso, necessariamente da modernidade e tomamos desse período os paradigmas orientadores. Mas vale lembrar que o índio e sua tradição do infanticídio não vivem simultaneamente conosco um tempo uno. Apresentar respostas aqui seria, a meu ver, prestar à cultura uma assimilação definitiva que não há (ao contrário do que aspirava o ideal romântico). Resta saber com que argumento e emoção iremos transitar entre valores e práticas sociais tão opostos e realizar o movimento entre a permutação pacífica e a disputa hegemonia.

Desculpem-me se fugi um pouquinho do urbano. É que nesses tempos fica difícil distinguir onde realmente está a selva. O tema proposto é apenas uma das tantas diferenças entre o mundo daqui e o de lá. São cidades e florestas, mas ainda assim Terra de Vera Cruz. Ah, e não dá para negar que há um tanto de provincianismo nisso tudo!

Carol Melo


Citações:

[1] Cardoso de Oliveira, Roberto, “Antropologia e moralidade: etnicidade e as possibilidades de uma ética planetaria”. Conferências Luiz de Castro Faria, realizada na UFRJ em julho de 1993. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_24/rbcs24_07.html Acesso: 23/08/08

[2] Idem

[3] Idem

Outras fontes: a quem queira também consultar

http://vozpelavida.blogspot.com/

http://www.antropos.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=132&Itemid=26

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u389427.shtml

http://tempora-mores.blogspot.com/2007/09/o-relativismo-multicultural-e-o.html

http://danieldliver.blogspot.com/2007/09/o-infanticdio-indgena.html

Imagem:

http://flickr.com/photos/alvesraphael1982/2536806673/


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