sábado, 16 de agosto de 2008

Cultura e arte como arma para a emancipação humana


Tenho preconceito com essa coisa de "hibridização cultural", na medida em que muitas manifestações pouco trazem de crítico, de profundo. Vejo a cultura não só como responsável pela identificação e inserção do sujeito na “sua” sociedade, mas principalmente como um mecanismo de autoconscientização e autoexteriorização do ser-humano, algo que pode fazê-lo desfetichizar-se, desalienar-se. Nesse sentido, não vejo com bons olhos manifestações como o funk, o axé e o futebol. Fenômenos de massa (diga lá populares) dificilmente trarão elementos críticos, análises profundas; de modo que não contribuem para essa identificação do ser-humano com sua espécie, com sua situação; não contribuem para que o ser-humano tenha percepção do todo, o que pode ser, a meu ver, alcançado pela arte. E, essa arte, não é outra senão a arte considerada "erudita" - a boa literatura, a boa música, a boa pintura, a filosofia. Visão essa adorniana, por muitos consideradas elitista. E de fato, o é. Eu, me perdoem, não consigo ver utilidade intelectual (que, para mim, deve ser o ideal de toda manifestação cultural) nos fenômenos de massa (pelo menos nos brasileiros). É uma visão meio marxista ortodoxa (não "ortodoxa” no sentido de stalinista – a burocracia estatal stalinista só permitia manifestação cultural (popular ou erudita) se ela estivesse vangloriando o governo – mas “ortodoxa” no sentido de que a emancipação humana passa pela universalização da arte enquanto justamente um modo do homem se emancipar e entender o mundo profundamente). Relaciono muito cultura com arte, como pode se ver. E acho que temos que relacionar a cultura com o fato mesmo de “ser culto” (e, como diria José Martí, “ser culto é a única maneira de ser livre”). Isso porque o capitalismo tende a, cada vez mais, unificar as diversas culturas em torno da cultura consumista. Então, a arte virou consumo (e consumo “bestializado”, que promove prazer efêmero, e nada contribui para a supracitada autoconscientização e autoexteriorização do ser-humano, ou nem mesmo para a humanização do ser-humano. A propósito, é mesmo isso, a arte – e, por extensão, a cultura – serviria, em última análise, para a independência e superioridade do homem em relação à natureza). A “desartificação da arte” (Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento) rebaixa o homem novamente à condição de “igualdade” com a natureza. Os prazeres efêmeros de nosso povo, como funk, axé, futebol, banalização do sexo e da violência, são “atividades” sumariamente “corporais”, e pouco ou nada “intelectuais”. E boa parte da “arte” reconhecida pela sociedade consumista também comunga desse “naturalismo”. Para citar um exemplo(vide algumas em http://pro.corbis.com/search/searchFrame.aspx): Ron Mueck, um artista plástico australiano que faz esculturas de pessoas (em tamanhos variados) quase perfeitas. É considerada uma grande arte moderna, grande aplicação da técnica, mas esse “quase perfeitas” mostra, por si só, que a imperfeição de suas representações o fazem “perder” da natureza, pois essa consegue “representar” os humanos e demais objetos “perfeitamente”. Sempre que vou tratar de cultura me delineio, me enveredo (para usar Guimarães Rosa) pelo caminho da arte. Vejo que a existência de um sujeito, e as suas relações (mesmo que cotidianas) lhe garantem um determinado conhecimento de mundo (entre duas pessoas que não lêem, a que se relaciona com mais pessoas e conhece mais lugares tem, teoricamente, um conhecimento de mundo mais aprofundado). Mas é também, e sobretudo, a partir da arte que se pode conhecer o mundo e as relações humanas profunda e criticamente em sua totalidade, livre de amarras ideológicas. Desculpem, mas por esse caminho “cultural-artístico” consigo defender melhor essa minha posição “marxista ortodoxa”, e até porque também acho que as “culturas” enquanto identidades de determinados povos ou etnias se restringem a poucos grupos remanescentes, como índios ou aborígenes. Falar de uma “cultura brasileira”, ou uma “cultura latino-americana” acho, em virtude da globalização e do neoliberalismo, forçado, até porque mesmo no caso de enquadrar a cultura como significativo tradicional de um determinado povo, ela representa a necessidade do sujeito em se identificar, e, identificando-se, se situar, podendo, então, ter senso crítico sobre suas funções e seus atributos e sobre as funções e atributos de seus semelhantes. Situar um sujeito na cultura de um determinado país não pressupõe, ao contrário de um indígena, que ele se identifique enquanto tal e tenha percepção da totalidade em que se está inserido. Então, creio que o que se faz ‘mais’ necessário é que prezemos pela busca incessante de ser culto (o que inclui conhecer e entender outras culturas). Só assim (o que não é possível ‘apenas’ pela identificação com sua determinada cultura) o ser-humano pode se emancipar em relação à qualquer doutrinação ideológica. Perdoem-me um último preconceito (pré-conceito mesmo), pensemos em um brasileiro “típico”: funcionário público ou de alguma empresa que ganha entre um e três salários mínimos para fazer algum serviço relativamente importante (num todo, na medida em que sem tal – com uma greve de seu setor, por exemplo – o funcionamento da instituição para a qual trabalha está comprometido) mas menosprezado. Reclama (consigo mesmo, diga-se de passagem) de seu serviço, mas, com medo do desemprego ou de um emprego ainda pior remunerado, se apega à ele e provavelmente nele permanecerá por toda sua vida. Não lê (para não dizer nunca leu) – a não ser a Bíblia e algum jornalzinho popular –, gosta das músicas da moda, quando em casa sempre está vendo TV e, sobretudo, ama futebol – o qual acompanha diariamente e, por vezes, vai ao estádio torcer por seu time. Não se importa com política e, apesar de ter vontade em prestar algum concurso público, não tem condições psicológicas e mesmo materiais para se dedicar ao estudo. PERGUNTA-SE: esse sujeito tem cultura? A cultura dele não seria não ter cultura? É essa “cultura capitalista do médio oprimido” que representa o brasileiro, mas, ora, isso é cultura?
Por último, já que a professora falou umas duas vezes no Gramsci, gostaria também de passar por ele. Aquela sua idéia – apontada em Concepção Dialética da História, mas melhor defendida em Cadernos do Cárcere – de sociedade política e sociedade civil, e, dentro disso, da capacidade de uma determinada classe subalterna em conquistar a hegemonia na sociedade civil mesmo sem antes de conquistar a hegemonia na sociedade política, pode sair em defesa da visão dos Estudos Culturais da América Latina. Nesse sentido poderíamos vislumbrar que as variadas manifestações populares com algum viés político (hip hop, rap, mídias comunitárias, grafite, etc) poderiam conferir aos oprimidos uma relativa inserção na sociedade como um todo, a partir da exteriorização de seus problemas, de suas faculdades artísticas, de suas vontades, de sua, enfim, estética. Muito embora eu tente comungar dessa visão gramsciana, vejo que no Brasil – pelo menos no Brasil – as coisas não são assim tão simples, e a participação nas estruturas de poder (e, então, nos aparelhos ideológicos dominantes) é definitivamente vetada para uma participação soberanamente popular. Manifestações como essas supracitadas têm importância, mas para um ou outro grupo específico, uma ou outra comunidade específica. Não representa, como por vezes se acha, que os pobres estão, de alguma maneira, conquistando hegemonia na sociedade civil. São manifestações frágeis e pequenas, que só teriam chance de ganhar algum espaço na grande mídia e nas grandes instâncias de poder caso não trouxessem uma perspectiva profundamente crítica; e, então, estariam em conluio com as hegemonias dominantes.


P.S.: A foto é do novo disco do DJ e produtor Sérgio Costa, que ficou conhecido como MC Creu após o sucesso da Dança do Creu. A foto está em http://www.hagah.com.br/jsp/default.jsp?newsID=DYNAMIC,com.rbs.hagah.EventDetailsDataServer,detalhes&template=3055.dwt&uf=1&local=1&regionId=1&ingrid=338738&date=3&category=&region=C1&query=cr%C3%A9u

9 comentários:

Comunicação e Culturas Urbanas UFMG disse...

Esqueci de assinar né.
Braulio Siffert.

Vanessa Veiga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vanessa Veiga disse...

Muito bom o texto Braúlio, faz a gente pensar, ter senso crítico e se posicionar. Eu, prefiro um outro tipo de visão sobre a cultura. Aquela, de que a cultura está entremeada ao nosso redor, nas práticas sociais a que damos algum tipo de valoramento, de significado. Prefiro essa porque tenho medo do caminho que conduz a cultura a um tipo de pedestal, a algo que devemos procurar, ser exigentes, críticos. Essa sim [ a tal cultura erudita] me parece produzida por uma indústria e pronta para ser consumida por uma elite que pode pagar por ela e se vangloriar por isso. Ao final, nada contra a cultura erudita,ela é cultura mesmo. Só não gosto quando restringe-se cultura a isso. Um olhar mais interessado e sem preconceitos pode revelar mágicas [ e cultura!] do universo massificado, do cotidiano típico de um brasileiro típico. O próprio, e querido, Guimarães Rosa - lembrado por você - foi brilhante ao captar riquezas em coisas tão banais e comuns de um contexto típico de um tipo comum de brasileiro, no caso, o sertanejo.
Vanessa

Ju Afonso disse...

O texto ficou realmente muito bom! Obviamente, não concordo com a maioria das coisas escritas, mas cmo disse a Vanessa, faz a gente pensar, e é muito feliz em algumas passagens. A meu ver, o funk, o futebol e essas outras coisas chamadas "cultura de massa" são inúteis para quem as vê do lado de fora. O funk, por exemplo, pode até ser apelativo, exagerado. Mas todo mundo esquece que ele surgiu nos EUA e teve na música "eu só quero é ser feliz" sua primeira exibição. A música falava da vida na favela, das expectativas dos seus moradores e conseguiu colocar esse mundo, pouco visto por nós, nas telas do cinema, da tv e nas rádios de todo o país. Não que eu defenda o funk, mas há que se pensar nos benefícios que eles trazem e nas reflexões que podemos fazer. O que um funk como "MC creu" pode nos mostrar sobre a vida dessas pessoas? Muito.

Ju Afonso disse...

E se a questão é arte, o que é arte? Esse é um debate que ainda não tem resposta. Principalmente nos tempos atuais, aonde pinturas de crinaças, elefantes e robos são vendidas por até 40 mil dólares. Já vi muito mais em alguns programas televisivos do que em certas orquestras de música.

Juliana

viajero disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Concordo com a Vanessa.
Vejo na sua opinião, Bráulio, uma tendência a uma divisão sócio-cultural cada vez maior, ao contrário do que você mesmo diz desejar. Afinal, a meu ver, essa cultura, à qual defende, poucas pessoas podem ter acesso, ou seja, nós, da classe média, a qual muitas vezes nos colocamos como superiores a outros tipos de cultura. Como a Vanessa bem lembrou, um sertanejo pode não ter acesso a livros e músicas eruditas, mas por que rebaixá-lo a uma dita cultura inferior? Também não quero uma cultura em que sempre tenho que pensar na crítica, nos valores, na busca por algo. Enfim, é apenas mais uma opinião...

Comunicação e Culturas Urbanas UFMG disse...

É realmente proveitoso esse tipo de debate. Estou à procura de desvencilhar-me desse meu preconceito com essa, por assim dizer, "cultura do povo". Nessa minha procura um amigo que comunga mormente das mesmas idéias que eu me atentou para uma manifestação cultural de massas que é relevante: o repente nordestino. O ruim disso é que, COMO TUDO, tem sido adaptado ou subsumido pela cultura do consumo, o que lhe tira a originalidade e mesmo a capacidade de tratar de problemas cotidianos da dificuldade nordestina.
Acho que as "predominantes" manifestações "de massa" no Brasil, como axé, futebol, funk, podem DE FATO nos mostrar muito sobre nossa realidade(generalizando, obviamente): um povo burro, que não gosta (não sabe?) ler, não tem senso crítico, tem uma visão rasteira sobre arte. Aliás, Ju, acho que "o que é arte" nem é tão vago e difícil de se definir assim...no parco estudo sobre estética que tenho (de um viés marxista, mas não vulgar), arte é aquilo que nos dá a imagem da realidade numa dimensão essencial de nossa auto-consciência, aquilo que nos faz autoexteriozar e, ao mesmo tempo, autoconscientizar. Nas palavras de Leandro Konder em "Os Marxistas e a Arte": "a arte não é um mero produto do meio: é também uma manifestação da presença ativa do homem na transformação criadora do meio. E o meio não é jamais um meio homogêneo". Em meias palavras, assim como a cultura, a arte deve ter o claro e o difícil papel de auxiliar o homem em sua emancipação enquanto propriamente um ser-humano, um ser-histórico.
Por fim, a arte que é feita A PRIORI para ser vendida, em sua origem JÁ não é arte. Por outro caminho, ou seja, se a arte posteriormente FOR vendida, mas que não tenha nascido para SER vendida, mas para, vai lá, conscientizar, educar, manifestar, ela pode sim ser considerada como arte. Aí sim...nem tudo que É vendido é "não-arte", mas tudo que é feito PARA ser vendido não pode ser arte.
ah..tenho um milhão de coisas pra falar..mas quanto maior, menos pessoas vão ler né..então vai assim mesmo...abraços e valeu pelos comentários..é assim que se produz conhecimento...abraços, Braulio.

Comunicação e Culturas Urbanas UFMG disse...

Só mais uma coisinha...o Guimarães Rosa trata de algo que, vamos dizer assim, se "desvencilha" da sociedade de consumo. É o sertanejo "isolado", que, como mostra no Grande Sertão: Veredas, anda léguas e léguas sem topar com ninguém pelo caminho, com nenhum vestígio da dita "civilização" (que nada mais é que a "descivilização" não é mesmo?). Essas "culturas pontuais" - sertanejos, indígenas, aborígenes... - não incluo em minha análise crítica, e, assim, não menosprezo. Estou tratando só e somente só daqueles subsumidos pela cultura consumista. E no Guimarães, trata-se do existencial, do "universal" existente naquela particularidade, da infinitude...Reflexões filosóficas que, mesmo, partem de situações aparentemente banais. A Clarice Lispector que fez muito isso (em Laços de Família principalmente), Otto Lara Resende também (vide o conto O Elo Partido): partem, os personagens partem, de situações cotidianas para uma introspecção reflexiva muito profunda e contundente. E são reflexões que tratam mesmo da "desumanização" dos seres-humanos, que se descobrem seres "cotidianescos", que vivem sua vidinha de classe média e pouco prezam pelo conhecimento do resto do mundo. Então, viu só!? As reflexões de um indivíduo subsumido pela cultura do consumo perpassam por ela, inevitavelmente..
abraços, braulio.