Se o centro é o meio de qualquer corpo, temos então uma figura de duas partes. Entre elas, um ponto que, enquanto interface, divide um lado de seu oposto. O movimento de manipular os contornos, no entanto, desloca constantemente esse lugar. Até porque o espaço não tem limites, nem interrupção. Mas a porção compreendida entre um e o outro, e que pertence a esses dois, está sempre nessa mutante construção. O centro é, pois, uma representação indissociável do todo. E sua intensidade está justamente no fato inevitável da tangência.
Logo na partida, um jovem trajando o vermelho da sua ideologia poetisa palavras engajadas e conclama a resistência, usando como meio para portar a voz (se não símbolo) um megafone. Atravessando o ruído (tão polifônico em período de candidatura), uma mulher, que tinha idade para ser sua mãe, pergunta ao vento quem é que iria escutá-lo? O menino militante, protegido no seu próprio discurso, também não ouviu tal indagação. Acho que nenhum dos dois esperava resposta. Restou o eco.
Algumas esquinas à frente, um homem, de andar apressado e olhar desnorteado, carrega nos braços painéis de papelão com estampa eleitoral. Poderia ter passado desapercebido, não fosse a enunciação de sua caminhada como auto-condenação. Incorporando os trejeitos de um foragido, os pôsteres, que ele deve ter sacado de algum muro, se tornaram as provas do crime. Não do que ele imagina ser o seu... Afinal, saqueada fora a sua própria liberdade. As paredes do centro da cidade tornaram-se reflexo do nosso caos político, da apropriação desmedida do espaço comum e do desperdício do dinheiro público. Ao coitado, transformado em bandido, renderiam gorjetas. A cena, ironicamente, transcorria logo na avenida que se propõe a ligar a zona urbana de norte a sul: realidades tão distintas. Era Afonso Pena, nome de governante.
De um lado, o som desafinado das buzinas, sinal da (dês)ordem de atenção. Do outro, a batida bem marcada do funk, e toda a sua contravenção. Letras de apologia, protesto e deboche, saídas da favela, confundidas com a ofensa sem xingamento do volante, analgésico da tensão. No intervalo, eis o viaduto e seu barulho de compressão... imagem acústica do nosso tempo e espaço.
Próximos à rodoviária, três idosos proseiam, pitando um cigarro de palha. As cadeiras de balanço ganham forma redonda, e cada um deles parece em sua terceiridade dar conta da lei que rege o movimento do mundo. Histórias serenas, dignas de enredo interiorano, logo na porção mais transitória da cidade. Na contramão, espio uma moça com seus trinta e poucos anos, marcha ligeira, levando pelo corpo três malas. Talvez, carregasse naquele instante sua vida nos ombros. Assim, pelo menos, marcava seu semblante. Personagem desse lugar de partidas.... E ela passou, com toda a sua efemeridade.
Estirado no sofá, feito de papel retalhado, o calção surrado, uma garrafa (de água) ao lado, o cão que abana o rabo e o ar resignado. A rua transformada em lar aconchega o sujeito com suas sobras. De relance, poderia ser um pai de família qualquer, num dia preguiçoso, vendo paisagens corriqueiras na tv sem controle. Mas nesse casulo forjado é antes a invisibilidade que autoriza a privacidade. Ainda na Guaicurus, um forte odor de urina parece marcar o território masculino, herdado dos tempos de boemia. Quase que por instinto, um bando deles – feito guaikurus, para lembrar os hábeis guerreiros indígenas - compõe uma espécie de barreira humana e constrangem com astúcia o inimigo que queira se aproximar. A rua da “imoralidade”, com seus prostíbulos escondidos e insinuosos casarões, é o endereço da comercialização da intimidade. Vestígios de quem faz do centro sua estada.
Numa típica via de tráfego, resultado do cruzamento de três tumultuadas ruas, um rapaz se coloca ao meio, sentado no toco do canteiro, tendo a mochila como companheira. Às mãos, folhas de jogo da Sena, sob as quais ele constrói rabiscos, tomando do horizonte algum objeto de inspiração, mesmo que nada que estivesse à sua frente parecesse merecer minha atenção. Se eram planos traçados, apenas suspeito, mas digo que as armadilhas que aquele lugar reservava só podiam fazer do seu ritual um desafio à própria sorte. Seguindo o “destino”, bilhete premiado parecem ter encontrado os aposentados que, nas pílulas bicolores dos tabuleiros, previnem a demência e a solidão, já que outra fortuna o acaso não tem. Praça Sete. Marco zero dos sonhos e vazios.
De tantos paradoxos, resume a “fachada”, entre São Paulo e Oiapoque: “Avisa pra Madona... que o Brasil não tem censura!”, de Mv Bill, álbum Declarando Guerra, e co-autoria de quem mais desse trecho tenha se reapropirado.
Se minha intenção era a de captar os dois arcos do centro, conto que me rendi aos fragmentos. A ambigüidade é uma questão de leitura, e só é possível onde há a pluralidade. E de toda a mistura que compõe o centro da cidade, não tive como desviar da contradição. Desfiz os pares, porque os sentidos são diversos e a fronteira entre as partes é “passageira”. E diante de tantos descompassos, algo pareceu se harmonizar... Acho que fui arrebatada por aquelas figuras anônimas.
Carol Melo
Um comentário:
é, carolzinha... com este texto maravilhoso, você acabou encontrando o seu compasso em meio aos descompassos da cidade.
Meus parabéns!! Fiquei realmente emocionada...
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