quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O tolhimento econômico e o colapso estético - por Bráulio Siffert

Devo começar meu relato sobre à saída de campo ao centro de Belo Horizonte contrapondo-me a Yves Wikin, que diz que devemos escolher locais confortáveis, simples e não perigosos para se fazer um trabalho de campo. Ora, me parece muito mais cômodo e de fato menos desafiador tratar das impressões sobre lugares confortavelmente belos, seguros e limpos. Muito significativamente mais audacioso é observar, em locais pútridos, o que tenha sido devastado pela pestilência, ou, então, o que se conserva de belo. Já que a etnografia se tornou uma “arte de ver, arte de ser, arte de escrever”, senti-me desafiado a ver, sentir e escrever sobre a própria arte (ou a falta dela, ou sua degradação) num dos trechos dos mais sórdidos e repugnantes do grande centro de Belo Horizonte.
Sem mais rodeios, a conclusão na qual cheguei (que não me surpreendeu, e a ninguém surpreenderá) foi a de que o tolhimento econômico é o grande responsável pela degradação estética na área que visitamos. Antes de tratar dos fatos que me fizeram chegar a esse óbvio diagnóstico, peço desculpas por me sentir no direito de discorrer, algo ligeiramente, do que consideraria arte, e do que consideraria uma arte degradada. Quero considerar a arte como auto-conscientização e auto-exteriorização do homem, realizada através de um refinado e dinâmico esforço efetivado não só na manifestação exteriorizada de fato, mas também no estudo e compreensão de uma infinidade de outras expressões artísticas que estejam ao alcance temporal (se houver um grande detrimento material, acho realmente difícil que se produza arte). O que, enfim, julga a arte é mesmo o tempo: estou certo de que daqui há quarenta anos ninguém mais saberá quem foi Paulo Coelho. Reconheço a facilidade de interpretarem minhas opiniões sobre estética como elitista, e eu não me esforçaria para desmentir (não cabe aqui diferir sistematicamente arte de estética). Infelizmente, a regra é que o tolhimento econômico dificulta ou degrada manifestações artísticas esteticamente valiosas.
Para além disso tudo, devo ressaltar que não irei tratar dessa arte algo específica, delimitada. As impressões estéticas que se tem ao observar uma cidade são deveras distintas das impressões retiradas da leitura de um livro ou observação de uma pintura. A credibilidade da estética urbana é significativamente mais corroborada pelo esteticismo mesmo, pelo vislumbre, do que propriamente pela funcionalidade. Muito embora eu saiba que seja uma dicotomia indissociável (tão óbvio pensar que não há um sem o outro; não há, dizendo de forma rasteira, forma sem conteúdo nem vice-versa), bem me parece que um lado ou outro é mais ou menos importante dependendo da manifestação artística. Assim pretendo, com esse relato, exemplificado por elementos percebidos na saída de campo, perpassar pelas seguintes perguntas: O que seria a estética de uma cidade? E o que a degrada?
Vamos partir do princípio que a estética de uma cidade é aquilo que ela nos mostra quanto à sua imediaticidade visual, ou seja, o que nos vem aos olhos (mais à eles do que à outro sentido, que, obviamente, também têm suas impressões estéticas. Não cabe aqui discutir se o bom gosto de uma comida ou o cheiro agradável de uma flor são “efeitos de criação artística” tal como a observância primeira de um grande e antigo prédio. Para facilitar irei tratar aqui apenas das impressões visuais, com apenas um destaque para o odor pútrido de excrementos, presente em boa parte do caminho percorrido).
Pois bem, logo no começo da caminhada pela Avenida Afonso Pena algo me estorva: obras sendo feitas na calçada são isoladas por uma espécie de cordão que ocupa grande parte da rua. Não bastasse o incômodo da limitação do espaço para o tráfego humano, há um visual desagradável em virtude da poeira, do próprio cordão alaranjado, das pedras dispersas, da areia que se espalhou para além do espaço delimitado e de um banheiro químico com a notável discriminação feita por um adesivo com a letra “M” (já era mesmo óbvio de se esperar: só homens trabalhavam naquela obra; e, ainda além: aquele banheiro não era público). Porém, perdôo o ridículo: não podemos julgar algo que está em fase de construção, devemos esperar por sua conclusão (desde que, dada as incomodidades causadas, seja alcançada em tempo mais breve possível).
Na esquina da Afonso Pena com Tupinambás observei algo que me atormentou por outras diversas vezes durante todo o trajeto, e cuja funcionalidade e utilidade estética ainda não me foram reveladas (e desde sempre me intriga). Trata-se da pichação. Como de praxe, nem uma das várias que percebi pelo caminho soube me dizer algo. É de se esperar que o pichador não queira mesmo passar nada para os “leigos”, mas talvez para os comparsas, para as gangues inimigas ou para si mesmo. Assim, me seria forçado dizer que aquilo é arte. Ao contrário, creio que é um dos grandes responsáveis pela degradação estética dos locais observados. Já aqui um esboço de minha conclusão: a falta de estudos, de respeito pelo espaço público e de oportunidades e espaços para manifestar e exteriorizar os conflitos ou as vontades, além da já assimilada tradição de pichações nas grandes cidades, são as causas mais diretas desse tipo de intervenção. Com efeito, julgo poder afirmar que é mesmo o tolhimento econômico a causa infra-estrutural de todas essas conseqüentes causas (perdão pelo estranho termo).
Nem me satisfaria tratar dos santinhos e panfletos de propaganda política espalhados pelo chão ao longo do trajeto, nem dos cartazes de mesma natureza pregados em fachadas de prédios, postes, janelas e paredes. Primeiro que a degradação estética causada é muito óbvia e, por essência, abaixo da crítica. Depois: do ponto de vista cotidiano são intervenções efêmeras (o que se faz presente apenas de dois em dois anos não pode se caracterizar como determinante na estética de uma cidade). Em se tratando de panfletos, cartazes, manifestos e propagandas, o que caracteriza (e envilece) o caminho percorrido são aquelas que oferecem serviços como viagens, interpretação de cartas e toda sorte de produtos. É uma reutilização do espaço urbano (que é público, portanto visível por grande número de pessoas) com fins, veja só, econômicos.
A partir da Rua Curitiba, mais especificamente do prédio amarelo na esquina com Tupinambás, passei a reparar algo que também não mais deixou de estar presente pelo caminho: edifícios pintados com cores esdrúxulas (assim considero desde que tomados no contexto em que se situam; talvez isolados ou encaixados de modo visualmente estudado, poderiam ser notáveis criações artísticas). O amarelo foi o predominante (bem veja, o “esdrúxulo” amarelo pode se prezar para a arte, tal como o fez Van Gogh), mas também houve “gritos” de verde, vermelho, azul e rosa. A maioria deles foi assim pintada, penso eu, para chamar atenção para as atribuições (ou mesmo apenas para a existência) das lojas que neles se encerram. Mais uma vez perpasso pela idéia levantada: a necessidade econômica (poderíamos incluir a ambição, pois alguns desses prédios pertencem a grandes empresas como Ricardo Eletro e Ponto Frio) influi diretamente na estética (dessa vez também negativamente). Não obstante, alguns antigos prédios coloridos (com as mesmas cores chamativas, mas dispostas de modo bem mais suave) não assim o foram com vislumbres econômicos: diziam do modo arquitetônico elaborado da época. No caminho me surpreendi com a quantidade dessas belas edificações, mas, ao mesmo tempo, me entristeci por concluir que a maioria delas estava degradada (por má conservação, por pichações, por falta de revitalizações, por uso indevido, ou seja e enfim, por tolhimento econômico).
Abaixo do viaduto da Lagoinha, em frente ao bonito Centro dos Choufferes, há uma simples demonstração de que podem existir intervenções artísticas mesmo nos locais mais pútridos: uma das pilastras de sustentação do viaduto é toda pintada em um azul forte e conservado, enquanto uma “linha” feita de pequenos azulejos pretos e brancos vem desde a pilastra oposta, passa pelo chão e sobe, contornando, a pilastra. Agora o contexto dá, ao contrário da situação dos prédios com cores extravagantes, a beleza à manifestação. Já os grafites pintados ao longo de toda extensão do prédio que comporta o Shopping Xavantes ganham um efeito melancolicamente inverso: são belas, inteligentes e interessantes pinturas, mas o entorno sujo, colorido e degradado faz com que o prédio em questão carregue um pouco disso, e as pinturas também passam a nos incomodar. Se num outro contexto, seja lá em contraste com uma ampla rua só com edificações de cor clara e única, os grafites diriam muito mais esteticamente (essa ressalva do Shopping Xavantes devo ao colega Afonso).
Ao longo da Rua Guaicurus e da Rua Rio de Janeiro, repetições: prédios originalmente bonitos, mas que foram aos poucos degradados. Um ou outro parece ter sido revitalizado a pouco tempo. Novamente: o interesse econômico (e, por extensão, político) por aquela área específica é baixo. Não há mais turismo, o comércio costuma envolver pessoas das classes baixas, a preocupação maior é com a funcionalidade prática imediata.

Por fim, devo dizer que, naturalmente, meu recorte estético resumiu-se a poucas manifestações que dizem desse respeito. A propósito, as impressões sobre o belo e sobre sua degradação são infinitas, pode estar (e estão) em cada pedra, em cada pessoa, em cada objeto. Apesar de saber que observando os sujeitos também chegaria à conclusões relacionadas ao tolhimento econômico, abstive-me em tratar deles, pois pouco interpretaria nos termos do que optei por ser meu direcionamento, ou seja, a estética. Não vejo que se faz necessário eu apresentar uma conclusão das minhas observações: ela já se anuncia no título e é substanciada por exemplificações. Só um adendo: em momento algum quero dizer que em locais onde não haja obstáculos primordialmente econômicos e então tudo se mostra muito mais limpo e confortável, como em um bairro da Zona Sul, as impressões estéticas sejam muito agradáveis, ou a criação artística esteja muito mais presente e visível. Ao que me consta (mas para confirmar essa projeção precisaria de uma saída de campo à esses locais, tal como indica Wikin) os bairros considerados ricos de Belo Horizonte não muito acrescentam em termos artísticos, mas por não serem interpenetrados direta e efetivamente por dificuldades econômicas, não apresentam degradações tão repugnantes quanto às observadas no trajeto percorrido, e, então, não representam o que esse sim representa: o colapso estético.

Bráulio Siffert

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