Se cismar era modo, trocamos de cisma! Andamos na tarde meio chuva-meio sol como aqueles que descobriam ao tocar. Colocávamos a mão com os olhos e olhávamos com os pés. Tudo era toque, tudo era pungente. Se antes não cor, agora incontáveis. Se antes não identidade, agora pessoas-de-concreto. Se antes barulho, conversa-relação. O centro deixava, devagarzinho, de ser o Banco do Brasil, o PSIU, o Palácio das Artes.
Passos de passeio comprometido. Pé depois de pé, o centro nos andava. O espaço não escrevia, ele gritava e não ouvir era inumano. O quê que eu vejo? A pergunta parecia a de um menino roseano que ganhara, naquele instante, novos óculos. O centro é lindo! E disso, não há certeza como aquela que se comunga nos lugares comuns. O centro era lindo, porque era novo.
Tanta gente e tanta coisa. Fala e gesto, gesto e fala, fala-gesto, gesto-fala. Na Praça Sete, o movimento. Correria, voz, corpo mobilizado. Mãos, pernas, tronco e rosto, tudo transformado num grande auto-falante. Corpos-vozes tomavam o lugar e falavam de um sem número de lugares. Povo-fala e o corpo era todo voz. O que ver? Depois da praça, os corpos mobilizados, transformados, os corpos-postura-voz. Corpos que trazem dúvida: onde corpo, onde centro? Se via calçada e continuava olhando, esbarrava com alguém que parecia placa. Que tava ali, meio-gente, meio-letreiro. Gente que parecia árvore, parte da paisagem. Mais que árvore, era gente.
Um senhor cego trazia bengala, uma pasta e coisas tantas. Ao lado de uma loja, ele também vendia. Por quanto tempo ali ele estava? Por quantos dias de sua vida? Era vida-modo e seu corpo era meio. Ali estava, ali inscreve sua história, sua biografia. Ali, o moço é conhecido, é ali que ele se constitui, onde sua praça cresce. Nas calçadas, sua realidade se desvela. É na calçada que o corpo evoca uma autoridade: a do trabalho. O caixote do homem das sombrinhas é coberto por flores. O olhar meio-desconfiança, a mão ainda ocupada não pára. Seu corpo disposto, trabalhado, conformado pelo seu olhar e pelo de quem passa. O seu corpo encontrou na calçada do centro, modo de ser, de se misturar ao trabalho. Assim como o corpo-postura da mulher-voz que grita com amarelo, do homem-carrinho que não sabe se carrega papelão ou brinquedo e do moço-do-celular que de tão calado, parece sempre tê-lo sido.
“Moço, uma foto do senhor?” “Pode minino. Pra quê?” “Prum trabalho”. “Peraí, vô fazê pose”. O anel, o cigarro e os dentes de ouro que foram surpresa. O conforto do moço dali. Ele é dali. Seu corpo, nada-tenso. É tenro, apesar dos anos. Onde sua história, onde história do lugar?
Andança e andança, Baiana! “Tô importante”, ela diz quando nós, os eternos “mininos”, pedimos para fotografar o seu carrinho.“Como to bunita!”, fala Baiana ao ver a foto. Vida em carrinho, de onde sustento, de onde impressões de mundo. Dizem que a foto pinça o instante do devir, da continuidade, do passar dos outros instantes. Onde instantes passageiros? Baiana está ali há tempo e, se hoje ou amanha, o instante pinçado seria quase o mesmo. O devir de Baiana parece se locomover junto do devir da cidade. Outro ponto, outro dia, maior freguesia! Mas, nisso, nenhum lamento, Baiana, acima de tudo, ri e, com ela, ri o seu carrinho. Quantos produtos no carrinho da outra senhora de olhar perdido! Pipoca, paçoca, batata, água. Assim como Baiana, sua postura é quase-eterna. Por ela, passam pessoas. Para além de seu registro na fotografia, ela permanecerá pela medida de sua eternidade, pelo eterno que lhe cabe.
Camisa do cruzeiro e cabeça projetada, lançando um olhar, esboçando um tímido quase-nada de sorriso, mas intenção. Ao fundo, olhares que desenham linhas certeiras. O olhar é diretivo em uma pergunta. “Quem são eles?”. Os limpadores de parabrisas fizeram dali seu ponto. Menos estáticos, andam por entre os automóveis com suas ferramentas. Seu salário é de quanto for, quanto puder. Seus corpos, também ferramentas: o pequeno rodo com uma esponja na extremidade, modo de estender seus braços.
O centro é pra eles, é pra você, é pra senhora que espera ônibus, é pra senhora dos jornais e seu parceiro que, sentado sobre um saco de lixo, olha pensativo. O centro é realidade experimentada pelo neto e pelo avô que vendem vale-transporte: sua prática, o gesto da mão ágil ao contar os bilhetes e o olhar-soslaio comungado que denuncia parentesco. O centro é o sertão da senhora-gari que se apóia, imperiosa, em sua vassoura, dos meninos e de seus corpos-mídia que anunciam em primeira pessoa: “compro, vendo, troco”. Esqueceram-se do “vivo”. O centro é o do moço-fotógrafo que exibe seu rosto dentre os que carrega. Centro das mulheres-placa, do papai-noel.
Centro é esse sem número de lugares. Lugares de dentro, lugares de todo mundo. O corpo é esse centro de dentro, posto pra fora, mesmo que, nesse processo, caibam tantas implicações. Essa expressão do centro é a acomodação do corpo pelo espaço. No entanto, há a transformação do espaço pelo corpo, já que, os corpos das gentes, alarde de existência, mesmo não previstos no planejamento daqueles espaços, são mais que paisagens: formam-se mais forte que o poder do lugar.
Postado por Ronei S. Sampaio












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